Jazz em Agosto 2007: contextualização (updated)
Na preparação para o JeA 2007, colocámos 3 questões introdutórias a Rui Neves, director artístico do festival da Fundação Gulbenkian. Para ouvir na Rádio Universidade de Coimbra no proximo Sábado, ideias que convém fixar...
1. Parece haver uma dualidade na origem das escolhas para cada cartaz do Jazz em Agosto. As propostas mais entusiasmantes do jazz actual encontram-se na Europa ou nos EUA? Em que sentido?
R.> A dualidade América-Europa sempre esteve em evidência no JeA desde o seu início há 24 anos. Se verificarmos as programações, ano a ano, essa dualidade sempre esteve expressa no sentido, direi, ambicioso, de consagração dos mais importantes criadores da sua História dos últimos 40 anos depois da eclosão do free jazz/new thing que se considera um período charneira de mudança. Nos anos 1980’s, o JeA apresentou em estreia portuguesa, por exemplo, Sun Ra Arkestra, Art Ensemble of Chicago, World Saxophone 4tet, Henry Threadgill 6tet, George Russell Living Time Orchestra, Jimmy Giuffre 4tet, Tim Berne Chaos Totale, Ornette Coleman Prime Time Band, Steve Lacy 6tet.
Mas o lado Europeu do jazz inovador esteve igualmente presente, em paridade, com Terje Rypdal, Trevor Watts Moiré Music, Jan Garbarek, Vienna Art Orchestra, os primeiros projectos autónomos de músicos portugueses: António Vargas, Mário Laginha, Carlos Martins, Paulo Curado e Carlos Zíngaro; a bem dizer, a maior parte dos músicos de jazz portugueses devem ao JeA a sua melhor projecção de reconhecimento. O que se pretende é estabelecer uma ponte entre os EUA e a Europa que una quem se preocupa em transcender os limites convencionais desta música conhecida como jazz. No fundo, de ambos os lados do Atlântico, sempre houve músicos que inovaram e creio que, nos anos mais recentes, o jazz feito na Europa adquiriu uma inegável identidade o que não quer dizer que o jazz dos EUA, onde nasceu, não tenha conhecido inovação, ficando para trás.
O que, hoje, se observa na produção do jazz americano é o quase desaparecimento de músicos afro-americanos das novas gerações, talvez mais interessados numa contribuição à música popular. Os poucos músicos afro-americanos chegados ao jazz preferem escolher a via mainstream, quiçá, seguindo o exemplo de um Wynton Marsalis, mais seguro e convencional. Neste sentido, o que se observa é a maior parte dos músicos de jazz inovador dos EUA serem brancos. Mas convém dizer que esta dualidade racial sempre esteve também presente ao longo das edições do JeA desde o seu início.
2. O jazz enquanto estética consegue acolher expressões musicas mais experimentais e inovadoras do que outras tipologias. Concorda? É isso que o mantém tão actual?
R. > Tal como o broadcaster da Public Radio dos EUA, Willys Connover, dizia nos anos 1960’s, 70’s, ‘o jazz não é uma música em si, é uma maneira de se fazer música’, eu acrescentaria que o jazz adquiriu uma gramática e uma sintaxe próprias, ou seja, estabelecendo um alfabeto que pode ser re-inventado (por exemplo, com as blue notes), criando um sistema de grelha, muito livre, que permite incorporar muitas ideias exteriores à linguagem original. Aliás, o jazz é disso um bom exemplo: não começou ele a apropriar-se das canções da Broadway e a torná-las puramente instrumentais? Hoje, assistimos a todos os tipos de contaminação, como se diz …Por outro lado e na actualidade, os músicos têm mais estudos académicos, são mais técnicos e estão expostos a muito mais música, sendo natural que se tornem peritos não só em jazz mas noutros tipos de música, combinando-as com seriedade. O jazz, como reflexo social, tem que ser encarado na actual sociedade como fractal, globalizante numa economia globalizada e nós, os mais velhos, há 30 anos já dizíamos que o jazz era universal, tínhamos essa certeza. O JeA, neste campo assume-se sincrónico e diacrónico em relação à realidade evolutiva desta música, colhendo, retratando o que é de hoje mas numa perspectiva da sua História. E, hoje, mais do que nunca, há que se ser selectivo, pois a facilidade de se editar e distribuir gerou, perversamente, muitos sucedâneos e inutilidades.
3. Em Portugal parecem multiplicar-se os festivais de jazz de ano para ano. O Jazz em Agosto continua a ser ímpar. O que o distingue dos outros festivais? Internacionalmente, o JeA seria comparável a algum outro festival?
R. >Não há dúvidas que o jazz se tornou moda ou então, algo de reconhecido mais pelos seus efeitos exteriores e histriónicos do que na sua essência (o sucesso das cantoras de jazz é um bom exemplo). Daí que se reconheça essa proliferação de festivais, captando mais público através das suas formas mais comunicativas e evidentes. Em Portugal, o efeito foi similar ao dos países onde o jazz se encontra mais implantado, mas, diga-se em boa verdade, a maior parte dos festivais de Portugal apresentam-se com o nome pomposo de Festivais mas muitos só apresentam nem meia dúzia de concertos do que está mais à superfície. Excepções existem certamente, casos de Guimarães (que, mesmo assim, abdicou de uma linha programática mais inovadora), Estoril Jazz (dedicado a uma linha conservadora, convencional), os Encontros de Jazz de Coimbra (divididos em duas partes durante o ano e, realmente, interessado na modernidade, tendo até aqui desenvolvido um notável trabalho).
A grande maioria dos festivais de jazz portugueses são assumidos por Câmaras Municipais, o que é louvável, mas que, possivelmente, como política populista, estão mais interessadas em captar votos com programas seguros, escamoteando riscos. Este ponto marcará a diferença do JeA, porque é promovido por uma instituição como a Fundação Calouste Gulbenkian, não dependendo de receitas de bilheteira, assentando num grande rigor orçamental orientado por uma concepção de gestão não lucrativa. Aqui, o risco, no sentido em que apresenta grupos inéditos, menos conhecidos e que se estreiam em Portugal, beneficia de uma divulgação dirigida, didáctica, suscitando o público à descoberta do que não conhece. O que tem acontecido no JeA é que o público, com uma cota internacional significativa e mesmo não conhecendo o que vai ver e ouvir, acaba por aderir. Outro aspecto, ainda, que poderá fazer considerar o JeA ímpar no panorama nacional é o facto de ser mesmo um festival internacional com divulgação e projecção fora de Portugal, visitado por vários jornalistas e especialistas de outros países que lhe têm proporcionado esse reconhecimento e visibilidade.
O JeA, como já tenho dito, faz parte de uma pequena constelação de festivais internacionais que manifestam o mesmo tipo de preocupações estéticas: Mulhouse em França, Tampere na Finlândia, Willisau na Suiça, Moers na Alemanha, Victoriaville no Canadá, Saalfelden em Áustria, Nevers em França, existindo, no fundo, uma certa capilaridade, uma noção de vasos comunicantes, entre si.
"jazz em agosto"
1. Parece haver uma dualidade na origem das escolhas para cada cartaz do Jazz em Agosto. As propostas mais entusiasmantes do jazz actual encontram-se na Europa ou nos EUA? Em que sentido?
R.> A dualidade América-Europa sempre esteve em evidência no JeA desde o seu início há 24 anos. Se verificarmos as programações, ano a ano, essa dualidade sempre esteve expressa no sentido, direi, ambicioso, de consagração dos mais importantes criadores da sua História dos últimos 40 anos depois da eclosão do free jazz/new thing que se considera um período charneira de mudança. Nos anos 1980’s, o JeA apresentou em estreia portuguesa, por exemplo, Sun Ra Arkestra, Art Ensemble of Chicago, World Saxophone 4tet, Henry Threadgill 6tet, George Russell Living Time Orchestra, Jimmy Giuffre 4tet, Tim Berne Chaos Totale, Ornette Coleman Prime Time Band, Steve Lacy 6tet.
Mas o lado Europeu do jazz inovador esteve igualmente presente, em paridade, com Terje Rypdal, Trevor Watts Moiré Music, Jan Garbarek, Vienna Art Orchestra, os primeiros projectos autónomos de músicos portugueses: António Vargas, Mário Laginha, Carlos Martins, Paulo Curado e Carlos Zíngaro; a bem dizer, a maior parte dos músicos de jazz portugueses devem ao JeA a sua melhor projecção de reconhecimento. O que se pretende é estabelecer uma ponte entre os EUA e a Europa que una quem se preocupa em transcender os limites convencionais desta música conhecida como jazz. No fundo, de ambos os lados do Atlântico, sempre houve músicos que inovaram e creio que, nos anos mais recentes, o jazz feito na Europa adquiriu uma inegável identidade o que não quer dizer que o jazz dos EUA, onde nasceu, não tenha conhecido inovação, ficando para trás.
O que, hoje, se observa na produção do jazz americano é o quase desaparecimento de músicos afro-americanos das novas gerações, talvez mais interessados numa contribuição à música popular. Os poucos músicos afro-americanos chegados ao jazz preferem escolher a via mainstream, quiçá, seguindo o exemplo de um Wynton Marsalis, mais seguro e convencional. Neste sentido, o que se observa é a maior parte dos músicos de jazz inovador dos EUA serem brancos. Mas convém dizer que esta dualidade racial sempre esteve também presente ao longo das edições do JeA desde o seu início.
2. O jazz enquanto estética consegue acolher expressões musicas mais experimentais e inovadoras do que outras tipologias. Concorda? É isso que o mantém tão actual?
R. > Tal como o broadcaster da Public Radio dos EUA, Willys Connover, dizia nos anos 1960’s, 70’s, ‘o jazz não é uma música em si, é uma maneira de se fazer música’, eu acrescentaria que o jazz adquiriu uma gramática e uma sintaxe próprias, ou seja, estabelecendo um alfabeto que pode ser re-inventado (por exemplo, com as blue notes), criando um sistema de grelha, muito livre, que permite incorporar muitas ideias exteriores à linguagem original. Aliás, o jazz é disso um bom exemplo: não começou ele a apropriar-se das canções da Broadway e a torná-las puramente instrumentais? Hoje, assistimos a todos os tipos de contaminação, como se diz …Por outro lado e na actualidade, os músicos têm mais estudos académicos, são mais técnicos e estão expostos a muito mais música, sendo natural que se tornem peritos não só em jazz mas noutros tipos de música, combinando-as com seriedade. O jazz, como reflexo social, tem que ser encarado na actual sociedade como fractal, globalizante numa economia globalizada e nós, os mais velhos, há 30 anos já dizíamos que o jazz era universal, tínhamos essa certeza. O JeA, neste campo assume-se sincrónico e diacrónico em relação à realidade evolutiva desta música, colhendo, retratando o que é de hoje mas numa perspectiva da sua História. E, hoje, mais do que nunca, há que se ser selectivo, pois a facilidade de se editar e distribuir gerou, perversamente, muitos sucedâneos e inutilidades.
3. Em Portugal parecem multiplicar-se os festivais de jazz de ano para ano. O Jazz em Agosto continua a ser ímpar. O que o distingue dos outros festivais? Internacionalmente, o JeA seria comparável a algum outro festival?
R. >Não há dúvidas que o jazz se tornou moda ou então, algo de reconhecido mais pelos seus efeitos exteriores e histriónicos do que na sua essência (o sucesso das cantoras de jazz é um bom exemplo). Daí que se reconheça essa proliferação de festivais, captando mais público através das suas formas mais comunicativas e evidentes. Em Portugal, o efeito foi similar ao dos países onde o jazz se encontra mais implantado, mas, diga-se em boa verdade, a maior parte dos festivais de Portugal apresentam-se com o nome pomposo de Festivais mas muitos só apresentam nem meia dúzia de concertos do que está mais à superfície. Excepções existem certamente, casos de Guimarães (que, mesmo assim, abdicou de uma linha programática mais inovadora), Estoril Jazz (dedicado a uma linha conservadora, convencional), os Encontros de Jazz de Coimbra (divididos em duas partes durante o ano e, realmente, interessado na modernidade, tendo até aqui desenvolvido um notável trabalho).
A grande maioria dos festivais de jazz portugueses são assumidos por Câmaras Municipais, o que é louvável, mas que, possivelmente, como política populista, estão mais interessadas em captar votos com programas seguros, escamoteando riscos. Este ponto marcará a diferença do JeA, porque é promovido por uma instituição como a Fundação Calouste Gulbenkian, não dependendo de receitas de bilheteira, assentando num grande rigor orçamental orientado por uma concepção de gestão não lucrativa. Aqui, o risco, no sentido em que apresenta grupos inéditos, menos conhecidos e que se estreiam em Portugal, beneficia de uma divulgação dirigida, didáctica, suscitando o público à descoberta do que não conhece. O que tem acontecido no JeA é que o público, com uma cota internacional significativa e mesmo não conhecendo o que vai ver e ouvir, acaba por aderir. Outro aspecto, ainda, que poderá fazer considerar o JeA ímpar no panorama nacional é o facto de ser mesmo um festival internacional com divulgação e projecção fora de Portugal, visitado por vários jornalistas e especialistas de outros países que lhe têm proporcionado esse reconhecimento e visibilidade.
O JeA, como já tenho dito, faz parte de uma pequena constelação de festivais internacionais que manifestam o mesmo tipo de preocupações estéticas: Mulhouse em França, Tampere na Finlândia, Willisau na Suiça, Moers na Alemanha, Victoriaville no Canadá, Saalfelden em Áustria, Nevers em França, existindo, no fundo, uma certa capilaridade, uma noção de vasos comunicantes, entre si.
"jazz em agosto"